A relação entre o consumo de cannabis e o apetite
A composição da planta de cannabis é formada por diversas moléculas, destacando-se os cannabinoides e os terpenos, entre outros. Do primeiro grupo de compostos, o THC é o cannabinoide que normalmente se encontra em maior quantidade no cannabis e é o responsável por seus efeitos psicoativos. No entanto, à medida que a ciência avança nas pesquisas sobre o cannabis, sabe-se que o THC não apenas produz a embriaguez associada ao consumo de cannabis, mas também é útil no tratamento de algumas doenças como o Glioblastoma (um tipo de câncer cerebral), assim como parece ser um dos responsáveis por sentirmos vontade de comer depois de consumir cannabis. Vários estudos demonstraram que o tetrahidrocanabinol interage com os receptores do sistema endocanabinóide, especialmente com os CB1 situados no cérebro, que regulam diferentes funções fisiológicas, incluindo a regulação do apetite.
Como o THC atua sobre nosso cérebro?
Quando consumimos THC, essa molécula se liga aos receptores que acabamos de mencionar, localizados no cérebro; através dessa interação, desencadeiam-se diferentes reações químicas, entre elas, a estimulação do apetite. É o que afirma um estudo (1) realizado por Farrimond, Williams e Kirkham (2002), que foi feito com ratos em um laboratório. Esta investigação científica demonstrou que os animais apresentavam um aumento na ingestão de alimentos consideravelmente maior do que o habitual depois da administração de THC. Os pesquisadores apontam que os cannabinoides administrados de maneira exógena (ou seja, que as moléculas não provêm do nosso organismo, mas da planta) promovem a alimentação ao aumentar o valor incentivador da comida e apoiam o papel dos endocanabinóides (os produzidos pelo organismo), neste caso a anandamida (agonista do THC), na regulação da apetência e da motivação para satisfazer essa necessidade fisiológica. https://www.youtube.com/shorts/9Y01K6jonIM
A ativação de neurônios no hipotálamo e o aumento do apetite
A região do hipotálamo do cérebro é encarregada de regular várias funções vitais para o nosso organismo, como a apetência. Os neurônios dessa área, chamados Proopiomelanocortina (POMC), têm um papel crucial na sinalização da saciedade, normalmente, quando esses neurônios são ativados, sentimos que já estamos satisfeitos e comemos o suficiente. Um estudo (2), realizado com ratos, descobriu que a administração de THC afeta a atividade dos neurônios POMC no hipotálamo, aumentando significativamente sua atividade. Curiosamente, poderia-se pensar que, se são eles os encarregados de “avisar” para pararmos de comer, ao aumentar sua atividade, os animais mostrariam uma redução na ingestão de alimentos. No entanto, ocorreu o oposto, observou-se um aumento significativo. Os pesquisadores deste estudo utilizaram técnicas avançadas de imagem para monitorar a ativação desses neurônios no hipotálamo em tempo real. O que descobriram é que o THC não só aumentava sua atividade (e com isso o apetite), mas também reduzia o tempo de latência para começar a ingestão, ou seja, o tempo que os animais levavam para começar a comer. Essas descobertas levam a pensar que o THC altera o equilíbrio normal da sinalização no hipotálamo do cérebro, aumentando a produção de neurotransmissores que estimulam o apetite. Outro estudo científico (3) revelou que os níveis de endocanabinóides no cérebro aumentam diante da privação alimentar e que bloquear os receptores do sistema endocanabinóide reduz o apetite. Essas descobertas indicam que o sistema endocanabinóide tem um papel muito importante na regulação do apetite e abre caminho para uma maior exploração do potencial dos cannabinoides no tratamento de patologias da alimentação e distúrbios metabólicos. Além disso, esses resultados ajudam a entender melhor por que o cannabis produz o famoso “efeito munchies“.
A comida se torna mais apetecível: aumento dos sentidos do olfato e gosto após consumir cannabis
Não existe uma única razão para os chamados “munchies”, trata-se de um fenômeno multifatorial. Outra razão pela qual experimentamos um apetite exacerbado após consumir cannabis é que os sentidos do olfato e do gosto se intensificam, fazendo com que a comida seja percebida como mais atraente. Um estudo (4), realizado em 2014, demonstrou que os cannabinoides aumentam a sensibilidade do olfato através de sua ação sobre os receptores CB1 do bulbo olfatório (localizado no cérebro). Através dessa interação, os cannabinoides aumentam nossa capacidade de detectar odores, produzindo uma sensação maior de excitação diante da comida.
O consumo de cannabis aumenta os níveis de Ghrelina e promove o apetite
A Ghrelina é um hormônio que incita a vontade de comer graças ao seu efeito no hipotálamo, uma região do cérebro que, como explicamos acima, intervém na regulação dessa função. Algumas investigações (5), apontam que o consumo de cannabis aumenta significativamente os níveis de Ghrelina no organismo, algo que contribui significativamente para a sensação de fome. A Ghrelina é comumente conhecida como “o hormônio da fome” e é liberada inicialmente no estômago, de onde viaja até o cérebro através da corrente sanguínea; uma vez lá, age sobre a região do hipotálamo com o objetivo de induzir o apetite. Dessa forma, nosso organismo recebe o sinal de que precisa se alimentar. Em um estudo realizado por Cumminng et al. (2001), mediram-se os níveis de Ghrelina, Insulina e Leptina no plasma durante 24 horas em indivíduos que receberam refeições em um horário fixo. Por meio deste ensaio, foi demonstrado que os níveis de Ghrelina aumentavam quase o dobro antes de cada ingestão e diminuíam a níveis mínimos após comer, demonstrando assim o papel desse hormônio na regulação do apetite. Esses resultados estabeleceram as bases para que outra pesquisa (6), demonstrasse que, efetivamente, o consumo de cannabis intervém na regulação do apetite através da modificação dos níveis desses hormônios. Para isso, a pesquisa reuniu 20 participantes que, em diferentes sessões, consumiram cannabis de diferentes formas:
- Oral
- Fumado
- Vaporizado
Também foi administrado um placebo (uma fórmula sem cannabis). Amostras de sangue foram coletadas para medir os níveis de Ghrelina, Leptina, GLP-1 e Insulina após cada consumo. Os resultados deste ensaio revelaram que:
- Os níveis de insulina no sangue aumentaram quando os participantes consumiram o placebo devido a ser em formato de brownie; no entanto, esse aumento foi menor quando realmente consumiram cannabis na sessão.
- GLP-1: as concentrações desse hormônio, que contribui para regular o apetite, foram menores quando os sujeitos consumiram cannabis em comparação com o placebo.
- Ghrelina: os níveis desse hormônio foram consideravelmente mais altos após o consumo de cannabis oral em comparação com o cannabis pela inalação.
Com essas descobertas, este estudo demonstrou que, efetivamente, o consumo de cannabis modifica os níveis de diferentes hormônios relacionados ao apetite e ao metabolismo, compreender esses mecanismos oferece informações muito úteis para o possível tratamento de patologias relacionadas a essas funções.
Cannabis e apetite: perspectivas terapêuticas
O efeito dos canabinóides na modulação do apetite tem implicações importantes no âmbito medicinal. Essa informação reveladora é muito útil pra entender os mecanismos que regulam essa função e pode ser aplicada no tratamento dos efeitos colaterais de alguns tratamentos pra câncer ou HIV/AIDS, que podem suprimir o desejo de comer. Embora seja necessária mais pesquisa pra calibrar a segurança do uso prolongado de cannabis a longo prazo nesse tipo de contexto médico, as descobertas desses estudos fornecem evidências de que o cannabis pode ser um caminho pra melhorar a qualidade de vida dos pacientes que sofrem de perda de apetite devido a doenças graves.
Conclusão
A ciência por trás dos munchies revela que isso acontece por meio de diferentes mecanismos que impactam nosso organismo através do sistema endocanabinóide. Um processo no qual interferem vários fatores que incluem a ativação dos neurônios no hipotálamo, o aumento da sensibilidade do olfato e do paladar e várias hormonas endócrinas como a grelina. Esses resultados não são apenas interessantes a nível científico, mas abrem o caminho pra importantes aplicações terapêuticas, pois o cannabis pode ser uma ferramenta pra atenuar os efeitos colaterais de várias doenças e tratamentos, com um perfil de segurança maior do que outros fármacos usados na medicina atual. No entanto, é necessária mais investigação sobre este e outros aspectos da cannabis medicinal; enquanto isso, continuaremos informando você sobre os avanços mais recentes na área. 1.Farrimond JA, Whalley BJ, Williams CM. Um extrato de cannabis com baixo-Δ9-tetraidrocanabinol induz hiperfagia em ratos. Behav Pharmacol. 2010 Dez;21(8):769-72. doi: 10.1097/FBP.0b013e328340a062. PMID: 20975531. 2. Koch, M., Varela, L., Kim, J. et al. Neurônios POMC hipotalâmicos promovem a alimentação induzida por canabinoides. Nature 519, 45–50 (2015). https://doi.org/10.1038/nature14260 3. Di Marzo, V., & Matias, I. (2005). Controle endocanabinóide da ingestão de alimentos e equilíbrio energético. Nature Neuroscience, 8(585-589). 4. Soria-Gómez, E., Bellocchio, L., Reguero, L., Lepousez, G., Martin, C., Bendahmane, M., Ruehle, S., Remmers, F., Desprez, T., Matias, I., Wiesner, T., Cannich, A., Nissant, A., Wadleigh, A., Pape, H. C., Chiarlone, A., Quarta, C., Verrier, D., Vincent, P., … & Marsicano, G. (2014). O sistema endocanabinóide controla a ingestão de alimentos por meio de processos olfativos. Nature Neuroscience, 17(407-415). Ver estudo. 5. Cummings, D. E., Purnell, J. Q., Frayo, R. S., Schmidova, K., Wisse, B. E., & Weigle, D. S. (2001). Um aumento pré-prandial nos níveis de grelina plasmática sugere um papel na iniciação das refeições em humanos. Diabetes, 50(8), 1714-1719. 6. Farokhnia M, McDiarmid GR, Newmeyer MN, Munjal V, Abulseoud OA, Huestis MA, Leggio L. Efeitos do cannabis oral, fumado e vaporizado em vias endócrinas relacionadas ao apetite e ao metabolismo: um estudo randomizado, duplo-cego, controlado por placebo, em laboratório humano. Transl Psychiatry. 2020 Fev 19;10(1):71. doi: 10.1038/s41398-020-0756-3. PMID: 32075958; PMCID: PMC7031261.