Com a gradual legalização da cannabis medicinal nos últimos anos, o número de estudos científicos sobre o potencial terapêutico de seus compostos cresceu. À medida que essas pesquisas surgem, sabemos mais sobre as distintas funções dos componentes da cannabis; canabinoides como o THC ou o CBD, terpenos como o Limoneno ou o Linalool; e como interagem entre si.
Os terpenos aumentam os efeitos do THC no cérebro
Um estudo (8) recente, publicado em junho de 2023, esclareceu o debate científico em relação ao potencial dos terpenos para aumentar a efetividade dos canabinoides. Para isso, foram analisados os resultados da ativação dos receptores CB1 do sistema endocanabinoide situados no cérebro. Isso foi feito usando diferentes fórmulas:
- Somente os terpenos (16 dos terpenos que se encontram na composição da cannabis).
- O THC isolado.
- O THC junto com os terpenos.
Os resultados dessa pesquisa revelaram que os terpenos sozinhos podem ativar esses receptores, embora de uma maneira mais suave do que o THC. No entanto, ao combinar alguns terpenos com o THC, observou-se que a ativação desses receptores aumentou notavelmente, muito mais do que o THC conseguiu de forma isolada. Um dado interessante é que essa maior ativação ocorre mesmo com proporções de Terpenos/THC semelhantes às que naturalmente se encontram na planta da cannabis, onde os terpenos estão em concentrações baixas. Esses resultados sugerem que a combinação de terpenos e THC obtém um efeito maior do que os compostos isolados; ou seja, eles se potencializam mutuamente. Portanto, apoia a teoria de que alguns terpenos podem modificar a interação do THC no cérebro. Outro achado importante desse estudo é que a ativação dos receptores CB1 (com a fórmula THC em sinergia com os terpenos) ocorreu apenas com alguns dos terpenos da cannabis que foram utilizados (não com todos), muitos dos quais NÃO fazem parte dos terpenos principais, encontrados em maiores quantidades na planta. Portanto, segundo este estudo, usar uma composição full spectrum (extraída da planta de cannabis com seu respectivo perfil de terpenos) pode não ser uma vantagem necessariamente em todos os casos. Segundo aponta essa pesquisa, a fim de otimizar os resultados para cada tratamento, os medicamentos à base de canabinoides devem ser administrados junto com os terpenos mais adequados, a fim de conseguir a maior ativação dos receptores envolvidos na condição específica a ser tratada. Nesse sentido, conclui-se que desenvolver genéticas de cannabis ricas em terpenos selecionados é viável, mas requer grandes esforços e tempo. Em contrapartida, enriquecer os extratos de cannabis com perfis de terpenos selecionados, sejam eles originários da cannabis ou de outras plantas, é muito mais fácil e aplicável em um sistema de dosagem e padronização dos medicamentos canábicos. Para concluir, o estudo aponta que o uso dos terpenos poderia permitir reduzir a dose de THC em alguns casos, e com isso minimizar seus efeitos colaterais. Também poderia ser a solução para aqueles pacientes que desenvolveram tolerância à dose de THC, aumentando ou adicionando a dose dos terpenos sem precisar aumentar a dose do canabinoide (evitando assim seus efeitos colaterais e a psicoatividade associada). Isso seria especialmente importante na hora de ajustar os tratamentos para segmentos da população mais sensíveis, como crianças e idosos. O uso de terpenos selecionados poderia permitir ajustar a composição às necessidades de cada paciente, bem como às mudanças que possam ocorrer em casos de tratamentos crônicos, por exemplo, os medicamentos tomados durante o dia versus os tomados para dormir. https://www.youtube.com/shorts/j3bTrhzWdFQ
CBD e terpenos para a melhora cognitiva
Existem múltiplos estudos científicos acerca das propriedades do CBD para o tratamento de doenças neurodegenerativas (Alzheimer, Huntington e Parkinson), distúrbios neuro-inflamatórios (encefalopatia induzida por sepsis) e distúrbios neurológicos (lesão cerebral isquêmica). Em uma revisão desses estudos (11), concluiu-se que a evidência empírica indica que o chamado efeito séquito parece funcionar melhor nesse tipo de caso. Ou seja, embora a evidência científica mostre que o CBD isolado é um composto altamente efetivo e seguro para o tratamento do deterioro cognitivo, quando administrado junto a outros compostos da planta, essa combinação traz um efeito maior. Nesta revisão científica, aponta-se que os benefícios do CBD seriam potencializados no âmbito da saúde cerebral e da cognição por moléculas como os terpenos Linalool, Pineno e Cariofileno, flavonoides e a antocianina (um grupo de pigmentos vegetais que proporcionam a algumas plantas de cannabis cores azuladas, avermelhadas, roxas e pretas). O efeito séquito parece ser mais adequado para tratar o tipo de condições anteriormente mencionadas. A dose e as quantidades de cada composto devem ser devidamente estudadas para cada tratamento; por isso, atualmente é necessária uma maior investigação para determinar a prescrição ótima para tratar doenças específicas; isso incluiria a dose, a via de administração, a eficácia clínica a longo prazo, a segurança e os efeitos colaterais. É bom lembrar que os terpenos, embora não produzam nenhum efeito psicoativo, possuem propriedades por si (antifúngicas, anti-inflamatórias, ansiolíticas, entre outras), e que cada um deles possui efeitos determinados nesse sentido.
Direto no cérebro: os terpenos e sua capacidade de atravessar a barreira hematoencefálica
A barreira hematoencefálica (BHE) é uma estrutura de proteção que regula a passagem de substâncias entre o sangue e o cérebro. Podemos imaginá-la como uma espécie de filtro que serve para proteger o tecido cerebral, para que não penetrem nele substâncias prejudiciais. A BHE permite a passagem de nutrientes essenciais, enquanto bloqueia patógenos, toxinas, etc. O problema surge quando se deseja administrar certas substâncias com propósito terapêutico, mas esses medicamentos não conseguem atravessar a BHE (pelo menos parcialmente), e, por isso, seu efeito é reduzido. Alguns estudos (1, 2, 3, 4, 5) afirmam que certos terpenos, por serem moléculas pequenas e lipossolúveis, têm a capacidade de transferir-se através da mucosa nasal (na inalação), assim como também através da pele após a aplicação tópica, entrar na corrente sanguínea e cruzar a barreira hematoencefálica. Um desses estudos (4) apoia que essa capacidade poderia beneficiar a melhoria do desempenho cognitivo (graças a certas propriedades de determinados terpenos) e ser uma possível ferramenta no tratamento de doenças neurodegenerativas como o Alzheimer. Em outro estudo (5), foi revisada a capacidade protetora dos terpenos sobre a degradação do próprioBHE. Este estudo afirma que os terpenos poderiam contribuir para modular as cascatas de sinalização associadas ao deterioro da barreira hematoencefálica e, consequentemente, à progressão de distúrbios neurológicos. Ambos os estudos sugerem que os terpenos têm um potencial significativo no âmbito medicinal, graças à sua capacidade de cruzar a BHE e exercer efeitos protetores ou terapêuticos no cérebro. No entanto, é necessário realizar mais pesquisas para entender de forma mais profunda esses mecanismos e como podem ser aplicados de maneira eficaz nos tratamentos médicos.
Os terpenos podem favorecer a penetração dos cannabinoides no cérebro?
Embora tenha sido cientificamente demonstrada a capacidade dos terpenos para atravessar a barreira hematoencefálica, a pergunta que vale milhões é se essas moléculas também aumentam sua permeabilidade para outros compostos. As evidências de que os cannabinoides possuem propriedades eficazes para uso medicinal se acumularam nas últimas décadas, especialmente por suas capacidades de tratar a dor e a inflamação. Contudo, um dos grandes desafios que enfrenta o setor farmacêutico e terapêutico (na hora de criar produtos medicinais à base de cannabinoides) é seu potencial de absorção. Isso leva a dosagens inconsistentes e níveis de absorção irregulares, devido a características associadas aos cannabinoides, como baixa solubilidade e biodisponibilidade dependendo da via de administração. A necessidade de incorporar sistemas que aumentem os níveis de absorção é imperativa. Por isso, a capacidade dos terpenos de aumentar a permeabilidade da barreira hematoencefálica, permitindo maior absorção dos cannabinoides, está no foco. A experiência empírica, tanto de pacientes quanto de usuários recreativos, apoia um efeito mais elevado dos cannabinoides quando administrados junto aos terpenos. Como mencionamos anteriormente, esse fenômeno é comumente conhecido como entourage effect. No entanto, é necessário investigar os mecanismos pelos quais isso acontece. Em uma revisão de vários estudos científicos (6), foi estudada a capacidade do Mirceno em potencializar as propriedades inatas dos cannabinoides como analgésicos, ou seja, sua capacidade de reduzir a dor. Aparentemente, o Mirceno poderia ampliar os efeitos analgésicos dos cannabinoides através do aumento da permeabilidade da BHE, o que resultaria em um aumento no transporte dos cannabinoides para o cérebro. No entanto, é evidente que é necessária uma maior pesquisa sobre este tema específico, para se obter uma maior certeza sobre tais mecanismos. Outro estudo (7), demonstrou que o Mirceno, um dos principais terpenos do cannabis (presente na maioria das variedades), contribui para a absorção transdérmica (através da pele) de outras substâncias. Além disso, este estudo descobriu que esse terpeno é, por si só, eficaz como analgésico, ou seja, que ajuda a aliviar a dor. Curiosamente, esse efeito analgésico do Mirceno cessa quando se aplica naloxona, um medicamento que reverte os efeitos dos opioides. Isso parece indicar que o Mirceno poderia agir de maneira semelhante aos opioides em nosso organismo. Contudo, o Mirceno em si NÃO se liga diretamente aos receptores opioides (como os medicamentos à base de opiáceos), mas seu efeito para reduzir a dor se basearia na estimulação dos opioides endógenos do nosso organismo, ou seja, aqueles que nosso corpo produz naturalmente.
Os terpenos imitam os efeitos dos cannabinoides e potencializam sua ação
Outro estudo (9), publicado em abril de 2021 na prestigiosa revista científica “Nature”, estudou o efeito canabimimético dos terpenos e sua capacidade de amplificar os efeitos dos cannabinoides. O termo canabimimético refere-se ao fato de imitar os efeitos dos cannabinoides, seja sobre o sistema nervoso central, como em outros sistemas do corpo humano. Esta pesquisa realizou estudos in vitro e com animais utilizando terpenos em combinação com WIN55,212, um composto que imita a ação dos cannabinoides. Os pesquisadores observaram que terpenos como Humuleno, Geraniol, Linalool e Pineno, induziam efeitos em camundongos semelhantes aos produzidos pelos cannabinoides, indicando a capacidade dessas moléculas aromáticas de imitar sua atividade. Para respaldar essa teoria, os pesquisadores usaram substâncias que bloqueiam os efeitos dos cannabinoides e, ao fazê-lo, os efeitos provocados pelos terpenos foram interrompidos nos sujeitos. Em uma segunda etapa do estudo, os terpenos foram combinados com o WIN55,212, (o composto que imita a ação dos cannabinoides), e os efeitos sobre o comportamento dos camundongos foram potencializados consideravelmente. Nos experimentos realizados em laboratório, observou-se que os terpenos estudados ativavam os receptores do sistema endocanabinoide situados no cérebro. Esses achados apontam que os terpenos não apenas têm seus próprios efeitos que podem imitar os dos cannabinoides em alguns casos, mas podem ser úteis para potencializar os benefícios terapêuticos dos tratamentos com cannabinoides.
Conclusões sobre a interação dos terpenos e cannabinoides
É emocionante testemunhar o avanço da ciência nesta direção e o papel fundamental que os terpenos podem desempenhar no futuro do cannabis medicinal. Os terpenos, além de serem os componentes que proporcionam aroma e sabor à planta do cannabis, emergem como uma poderosa ferramenta para potencializar as propriedades dos cannabinoides, abrindo novas sendas para tratamentos mais eficazes e personalizados. Através de uma compreensão mais profunda dos mecanismos por meio dos quais isso se dá, poderíamos estar mais perto do que nunca de desbloquear um novo paradigma para o tratamento da dor, da inflamação e outras condições, minimizando ao mesmo tempo os efeitos adversos associados aos cannabinoides. Esses estudos científicos não apenas respaldam a validade do “efeito séquito”, mas ressaltam a necessidade de uma maior pesquisa sobre os terpenos e sua sinergia com os cannabinoides com o fim de aproveitar plenamente o potencial terapêutico do cannabis.
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- Yu, B. et al. “The mechanism of the opening of the blood–brain barrier by borneol: A pharmacodynamics and pharmacokinetics combination study”. J Ethnopharmacology. 2013; 150(3): 1096–1108 [Times cited = 67, Journal impact factor = 3.115]
- Wu, T., et a. “The Role and Mechanism of Borneol to Open the Blood-Brain Barrier”. Integr Cancer Ther. 2018; 17(3): 806–812 [Times cited = 1, Journal impact factor = 2.675]
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- REVIEW article. Front. Nutr., 19 July 2021. Sec. Nutrition and Metabolism. Volume 8 – 2021 | https://doi.org/10.3389/fnut.2021.699666.Myrceno—Quais os potenciais benefícios à saúde deste agente de sabor e aroma?
- Interação cooperativa de monoterpenos e fenilpropanoides na permeação da pele humana in vitro de óleos essenciais compostos complexos Sonja Schmitt1 , Ulrich F. Schaefer2 , Leonhard Doebler3 , Jürgen Reichling1 1Instituto de Farmácia e Biotecnologia Molecular, Departamento de Biologia, Universidade de Heidelberg, Heidelberg, Alemanha 2Departamento de Biofarmacêutica e Tecnologia Farmacêutica, Universidade de Saarland, Saarbruecken, Alemanha. 3Departamento de Cirurgia Plástica, Estética e Reconstrutiva, Atos Praxisklinik, Heidelberg, Alemanha Raz N, Eyal AM, Zeitouni DB, Hen-Shoval D, Davidson EM, Danieli A, Tauber M, Ben-Chaim Y.
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